Por Gisele Flores
“Jeitinho brasileiro” subverte a ordem e emperra o progresso. Um rápido olhar sobre o costume brasileiro de tentar fazer sobrepor o interesse particular momentâneo sobre a ordem estabelecida segundo os princípios do positivismo filosófico.
A República Federativa do Brasil, proclamada em 15 de Novembro de 1889, teve forte influência do Positivismo Filosófico defendido por Auguste Comte (1798-1857), que também teve como grande ideólogo o Conde de Saint-Simon (1760-1825), sendo marcada indelevelmente pelo lema “ordem e progresso” estampado em nossa bandeira nacional, mas que sofre com o costume do “jeitinho brasileiro” de subverter a ordem, emperrando o progresso social.
Isso acontece cotidianamente em pequenos atos civis como, por exemplo, um homem estacionado em uma vaga indicada para deficientes físicos ao ser abordado por um vigilante de um shopping center que logo tenta se justificar argumentando que “é só um pouquinho, só até a minha mulher voltar”. É só um pouquinho? Então é isso que um cadeirante terá de aceitar como justificativa por estar impedido de ter um mínimo de acessibilidade?
Uma mulher estacionada em fila dupla na rua defronte um colégio aguarda seu rebento encontrá-la e demonstra indiferença aos protestos dos demais condutores que tem que desviar dela para tentar seguir em frente. Quando orientada pelo vigilante da escola a estacionar mais à frente, ela responde: “Espera só um pouquinho porque o meu filho já está chegando”, embora ela nem saiba exatamente onde ele esteja.
Esses são apenas singelos exemplos de inúmeras situações diuturnas nas quais se revelam tentativas de centenas de milhares de condutores de, conscientemente, e ainda que flagrados em cometimento de infração, tentarem burlar a fiscalização com pretextos fúteis a fim de justificar interesses pessoais momentâneos, se colocando acima da lei quando convém, agindo como “diferenciados”, comumente sendo essas mesmas pessoas aquelas que levantam a voz quando “os outros” agem de forma análoga.
Como estamos às vésperas de uma Copa do Mundo em nosso país, autoproclamado como o “país do futebol”, vale lembrar que o capitão do tri-campeonato mundial acabou por expressar a famosa “Lei de Gérson”, “o gosto de levar vantagem em tudo, certo?”, uma personificação para o consciente coletivo popular procurar justificar a consolidação do “jeitinho”.
Auguste Comte criticava o individualismo, pois entendia o individuo como integrante de uma sociedade para a qual devia ser útil. Ao invés de elevar o conceito de “direitos” – privilégios unilaterais exigidos por um contra outros – elevava o conceito de “deveres”, obrigações mútuas e necessariamente relacionais entre as pessoas, consagrando a dependência e a solidariedade. O objetivo fundamental de Augusto Comte era criar uma ética humana e humanista que afirmasse as possibilidades (mas, também, os limites) da ação humana no mundo e na própria sociedade.
O trânsito, objeto de nossa atenção, parafraseando Comte, “é um todo, em que cada indivíduo integra uma totalidade que o transcende historicamente”. O carro é bem e espaço privado, mas o seu uso se dá num ambiente de convívio social, limitado pelo dever de respeitar todos os demais agentes (motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres), assim como integrantes deste ambiente (animais, plantas, ar, água e sinalização).
Comte foi um utópico, acreditava na construção de uma sociedade mais justa e mais fraterna, em que as disputas são apenas diferenças de perspectivas e solúveis por meio do diálogo fraterno e racional. Como verificamos comportamentos extremamente agressivos entre condutores, será que podemos acreditar também num trânsito mais ordeiro, sem jeitinhos, sem cada um querendo levar vantagem sobre o outro numa competição sem vencedores, com mais harmonia e, portanto, segurança? A sociedade que temos hoje será aquela que os fundadores de nossa república fundaram? Quais os princípios que hoje estão ditando o nosso comportamento? Como podemos nos “endireitarmos”?
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