A rodovia Ademar de Barros é considerada a principal via de acesso entre a região de Campinas, interior de São Paulo, ao sul de Minas Gerais. Diariamente, milhares de veículos utilizam-se da rodovia para o turismo, lazer ou mesmo a trabalho. E para suprir as necessidades de segurança desta rodovia, dezenas de policiais rodoviários mantém uma rotina de patrulhamento e fiscalização de trânsito diários. Além do efetivo policial, a estrada também abriga diversos postos de combustível e apoio aos seus usuários, além do serviço executado pela empresa que administra a rodovia.
Dentro deste contexto, que envolve segurança e apoio humano, Marcos e Ivan, patrulham a rodovia, a bordo de um Chevrolet Corsa, uma viatura semi-nova. O fato destes policiais utilizarem um veículo em ótimas condições se deve à parceria entre a Polícia Rodoviária e a concessionária responsável pela rodovia. Parceria esta, já prevista no contrato de concessão. Um ponto positivo para os patrulheiros, no auxílio aos condutores e no combate ao crime na rodovia.
Marcos e Ivan iniciam seu turno de trabalho em um ambiente de aparente tranquilidade. O fim da tarde de sábado é marcado por poucos veículos transitando pelas rodovias da região, fato que leva a poucas chances de ocorrer um acidente. Marcos é o motorista da viatura, enquanto Ivan pode ser considerado o encarregado desta dupla já acostumada à inúmeras ocorrências, sejam em acidentes, sejam policiais. E Marcos observa o movimento, dirigindo em uma baixa velocidade, o que propicia um melhor acompanhamento do tráfego e identificação de possíveis irregularidades ao longo da via. Com seus quase 16 anos de profissão, Marcos, é um policial experiente, de aspecto franzino, baixo e dono de uma enorme tranquilidade. Seu equilíbrio se traduz na grande perspicácia e extrema atenção nas ocorrências em que já se envolveu. Sua atuação efetiva, principalmente no combate ao crime, é motivo de respeito e admiração pelos seus colegas. Ivan pode ser considerado o contrário de seu companheiro, mas não menos respeitado e admirado pelos colegas. Com mais de vinte anos de profissão, Ivan sempre foi marcado pelo pragmatismo, energia e, podemos dizer também, sua intempestividade. Seu porte atlético, estatura alta e uma voz grave denotam uma imagem de intimidação aos que o vêem pela primeira vez. Mas apesar desta aparência intimidadora, Ivan é considerado uma pessoa amável e extremamente afeiçoada aos amigos.
A grande diferença entre ambos está no comportamento, enquanto Marcos é equilibrado e metódico em sua atuação, Ivan é explosivo e prático. Ivan é do tipo que não gosta de levar desaforo para casa. Marcos é sereno. Esta diferença tão gritante em temperamentos foi determinante na decisão do comandante em juntá-los em uma única equipe. Preocupado com a explosão e irreverencia de Ivan, resolveu colocá-lo com Marcos, dando o toque de sutileza na execução das tarefas. O objetivo é tornar a dupla mais equilibrada, sem perder a energia e determinação no cumprimento do dever. Uma mistura que na teoria, teria tudo para dar certo.
_ Está muito tranquilo! – disse Ivan, aparentando um certo tédio.
_ Que continue assim! – respondeu Marcos.
_ Vamos parar logo e realizar uma fiscalização. – disse Ivan
_ Calma, irmão!Primeiro vamos terminar o patrulhamento, depois vamos ter tempo para isso – respondeu novamente Marcos.
O objetivo principal de ambos policiais é propiciar a sensação de segurança aos condutores que trafegam pela rodovia. Além do patrulhamento, a dupla também adentra os postos e restaurantes ao longo da via, afim de inibir possíveis práticas delituosas. A dupla já adentrava no pátio do terceiro posto visitado, quando foi surpreendido por uma aglomeração de pessoas, junto à borracharia, localizada em um dos extremos do posto, distante da bomba e do restaurante. As pessoas, funcionários do posto e do restaurante, apinhavam-se junto à entrada da borracharia, em uma porta de acesso à uma pequenina casa, localizada nos fundos. Esta aglomeração atraiu a dupla de policiais, que atentos, rumaram em direção à borracharia.
_ Que será que está havendo lá? – perguntou Marcos.
_ Não sei! Mas vamos com cuidado! Pode ser uma tentativa de roubo – respondeu Ivan.
A aproximação da viatura da policia rodoviária chamou a atenção das pessoas, que ao avistarem os policiais, começaram a gesticular intensamente pedindo mais rapidez na chegada da polícia. Marcos e Ivan encostaram a viatura a poucos metros da entrada, desembarcaram e iniciaram sua caminhada em direção à borracharia. Logo várias pessoas cercaram os policiais. Eram homens e mulheres que aparentavam bastante agitação. Viam nos policiais a solução daquela situação.
_ Seu guarda! Ainda bem que chegou – disse uma pessoa para Marcos.
_ Graças a Deus! – exclamou outra.
_ Ele está louco! – disse uma terceira pessoa.
_ Mas quem está louco? – perguntou Ivan.
_ O borracheiro – respondeu.
Os olhares das pessoas que rodeavam a dupla estavam transtornados. Algumas mulheres tremiam. Os homens suavam frio mostrando que a situação era mais delicada que parecia. Marcos e Ivan continuavam sem saber o que estava ocorrendo. Ao aproximarem-se da entrada da borracharia, próximos à entrada da casa, outra pessoa alertou a dupla dizendo que havia um homem armado com um facão, no interior da borracharia. A dupla entreolhou-se e, como em uma transmissão de pensamentos, se posicionaram de forma defensiva sobre uma possível agressão do citado homem. Marcos virou-se para as pessoas e perguntou:
_ Afinal! O que está havendo aqui?
_ O borracheiro bebeu todas e está fora de si – disse um jovem, que pelos seus trajes, denunciava tratar-se de um frentista. – sua mulher foi até o Pronto Socorro levar a filha e deixou ele cuidando da outra filha, uma criança de colo. Mas o cara começou a beber e empunhar um facão dizendo que vai matar o primeiro que aparecer.
_ Seu guarda! Ele está com a criança lá dentro! Faz alguma coisa! – disse uma mulher à Ivan.
_ Nós vamos fazer! Tenha calma! – respondeu.
Um homem aproximou-se de Marcos e disse;
_ Seu guarda! Sou o proprietário do posto e desta borracharia! Quando me telefonaram dizendo sobre o ocorrido, corri para cá! Admiti este homem há uns quatro meses, sabia que ele era alcoólatra, mas ele veio me pedir emprego dizendo que estava recomeçando sua vida!
As palavras daquele senhor foram interrompidas por gritos agudos vindos do interior da casa. As palavras ganhavam uma entonação empastada, denunciando o estado de embriagues de quem proferiu. Gritos e palavrões do embriagado eram proferidos à cada momento que alguém apontasse a cabeça na porta da casa. A pessoas, do lado de fora, temiam entrar na casa e serem atingidas pelo facão daquele homem embriagado. Pediam insistentemente ao borracheiro que parasse com aquela cena agressiva. Queriam retirar a criança daquela casa. Mas não sabiam se a criança fora molestada pelo pai. O homem, novamente fitou os olhos de Marcos e continuou a conversa:
_ Eles passavam fome! O borracheiro e sua mulher imploraram serviço. Não tive como negar, pois precisava de um borracheiro que morasse aqui no posto. A esposa deste infeliz é uma mulher trabalhadora e corajosa. Ela ajuda o marido trabalhando como doméstica na cidade. E ela ainda sofria quando o marido se embriagava. Era agredida.
_ Mas ela nunca denunciou o marido? – perguntou Marcos.
_ Pelo que sei, ele chegou a se internar em uma clínica. Aqui no posto até que ele chegava a beber. Mas ficava na sua e nunca tinha mostrado esta agressividade! – respondeu.
Mais uma vez as palavras do proprietário foram cessadas com os berros do borracheiro, que mal conseguia formular uma frase exata. Pelos berros e palavrões, ele queria que todos se distanciassem. Mas a cada urro, mais pessoas aproximavam-se da borracharia, o que causou ainda mais a ira do borracheiro. Ivan, próximo a parede, temia que sua presença pudesse ainda tornar ainda mais agressivo o comportamento do borracheiro. Aguardava Marcos terminar a conversas com o proprietário afim de agir. A vontade de Ivan era entrar logo naquela casa, tomar no braço o facão do borracheiro e resgatar a criança. Mas o policial contera seus atos, à espera do amigo. Marcos ouvia atentamente o proprietário com o intuito de obter mais informações sobre o passado daquele bêbado.
_ Mas o quê o fez ficar neste estado? – perguntou ao proprietário.
_ Não sei! Só sei que ele cuidava da filha, uma criança recém-nascida. Segundo os frentistas, ele estava embriagado na porta da borracharia e proferia palavras de baixo calão em direção aos frentistas e aos clientes do posto. Já portava o facão. Quando meus funcionários se aproximaram dele, o infeliz correu para a casa e disse que quem entrasse morreria. – respondeu o homem.
Marcos pediu calma ao dono da borracharia. Lhe disse que o que pudesse fazer para resolver logo aquela triste situação, ele faria. Então aproximou-se de Ivan e disse:
_ Não ouço a criança! Vamos ter que agir!
_ Deixa que eu vou! Rapidinho eu resolvo! – respondeu Ivan.
_ Vamos devagar! Primeiro eu vou até a porta me identificar ao borracheiro e iniciar um contato – disse Marcos
Aproximando-se da porta, Marcos colocou-se na entrada da casa, procurando aparentar calma e serenidade. Localizou visualmente o borracheiro. O pobre homem encontrava-se sentado no pequeno sofá velho de sua sala. Portava em sua mão direita um facão utilizado para poda de árvores. Trajava um macacão sujo de poeira e graxa. Havia uma garrafa de aguardente, daqueles artesanais e sem rótulo, já vazia, derrubada no sofá. O borracheiro, um homem de meia idade, cor morena, baixo e franzino, exibia um ralo bigode que contrastava com seu rosto fino. Ao avistar o policial na entrada da casa, deu um salto e colocando-se em pé, levantando o facão, exibia-se em posição de ataque à Marcos. Balbuciava palavras difíceis de serem compreendidas, tamanho seu estado de embriagues. Marcos, atento aos movimentos do borracheiro, lhe disse:
_ Calma, amigo! Não vou lhe fazer mal! Abaixa este facão e deixa que eu veja seu filho!
Quando o policial se referiu a criança, o borracheiro ficou ainda mais inquieto. Começou a berrar para Marcos mandando que se afastasse. Sua palavras eram proferidas com certo esforço, e saíam empastadas. O borracheiro, então começava a berrar para que Marcos se afastasse. Marcos deu um passo para trás e disse:
_ Calma! Mas o que houve?
O borracheiro nada respondia, e apenas berrava para que Marcos saísse da casa. Varrendo visualmente aquele minúsculo cômodo, o policial avistou um carrinho de criança, no canto da sala, próximo ao corredor de acesso aos demais cômodos da casa. seu estado de conservação era sofrível, parecia ser encontrado em algum lixão da cidade. Os panos que compunham o berço do carrinho estavam desgastados e manchados, devido aos efeitos do tempo. Mas apesar da conservação, o carrinho estava limpo, denunciando o cuidado da mãe para com sua criança. Marcos não avistava a criança no berço do carrinho. Notou que atrás do carrinho, haviam algumas mantas esparramadas pelo chão. Uma pequena mancha no piso vermelho da casa, lhe parecia u’a mancha de sangue. Aquele cenário denunciava que algo de ruim poderia ter ocorrido com a criança. Marcos mal prestava atenção nas palavras inteligíveis daquele homem. Sua atenção estava voltada para um pequeno cômodo, o que lhe parecia ser o banheiro da casa, onde a mancha adentrava. Marcos deu dois passos para trás e, junto a Ivan, que se colocava entre a porta e a casa, disse:
_ Não vejo a criança! Mas parece que tem sangue no chão!
_ Irmão! Vou entrar lá e cobrir de pancada este safado! – respondeu Ivan.
Marcos virou-se para Ivan e tocando com a mãos os ombros de Ivan, lhe disse:
_ Calma! Eu vou entrar e pedir para ver a criança! Vai por trás e vê se dá para entrar!
Ivan apenas concordou com seu amigo através de um gesto positivo com a cabeça. Marcos voltou para a entrada da casa e, com as mãos levantadas, olhando fixamente no borracheiro, lhe disse:
_ Presta atenção! Vou entrar!
Marcos lentamente, passo sobre passo, adentrou a casa. Seus movimentos eram acompanhados atentamente pelo borracheiro, que permanecia imóvel, se apoiando à cabeceira do sofá, portando o facão com as duas mãos, pronto para atacar o policial. Ao se aproximar do cômodo onde os vestígios poderiam levar à criança, Marcos foi surpreendido pelo borracheiro que aos berros, e empunhando agressivamente o facão, berrava para que ele se afastasse daquele local. Marcos parou um instante, com as mãos levantadas, e olhando fixamente nos olhos vermelhos do borracheiro, acenou com a cabeça em sinal de positivo, tentando passar uma aparência amigável ao borracheiro. Junto à entrada do cômodo, Marcos viu tratar-se realmente de um pequeno banheiro. O Cômodo tinha pouca iluminação e uma pequena janela, situada sob os galhos de uma árvore frondosa, nos fundos da casa. Estes galhos faziam sombras sobre a janela, escurecendo o ambiente, o que dificultava a visualização de seu interior.
Marcos tinha sua atenção dividida entre o borracheiro e o banheiro. Esperava contar com o auxílio de seu colega. Ivan, nos fundos da casa, notou que as janelas encontravam-se trancadas, bem como a porta da cozinha, o único acesso entre os fundos e a casa. Na posição em que estava, Ivan só poderia auxiliar se arrombasse a porta, mas o barulho que provocaria e sem saber da posição da criança, o fez abortar esta possibilidade, com temor que algo pudesse ocorrer no interior da casa. Ivan dirigiu-se à frente da casa, aguardando qualquer pedido de auxilio do amigo para que pudesse entrar. Confiava na experiencia do colega para resolver o problema. E se curvando frente à porta avisou o colega da impossibilidade de auxílio.
No interior da casa, Marcos deu mais um passo em direção ao banheiro. Vendo que o borracheiro não esboçava qualquer reação, procurou varrer com os olhos o interior do banheiro, afim de localizar a criança. Logo sua atenção foi voltada ao rodapé da parede, junto à privada, onde um amontoado de mantas e fraldas encontravam-se enrolados de forma que parecia, aos olhos de Marcos, com um pequeno corpo entre estes trajes. A cena que Marcos podia visualizar lhe causou um frio em sua barriga. As fraudas e mantas encontravam-se totalmente ensanguentadas. A mancha, que Marcos inicialmente não tinha certeza tratar-se de sangue, devido ao piso vermelho da sala, demonstrava ser mesmo uma trilha de sangue. Quando atingiu o piso claro do pequeno banheiro, estas manchas se tornaram evidentes. Logo, Marcos visualizou parte do bracinho da criança de fora da manta, denunciando que ela poderia estar enrolada naquele manto. O policial ficou alguns instantes imóvel, petrificado frente à uma cena monstruosa. Sua vontade era de saltar naquela pequena vida afim de lhe oferecer o resgate. Seu coração parecia querer sair em sua boca. Marcos então voltou seu olhar ao borracheiro. Seus olhos, que antes aparentavam incerteza e prudência, agora traduziam uma raiva contida prestes a aflorar. Marcos, então olhando para a porta da casa, disse:
_ Ivan! Fique na porta!
Ivan prontamente postou-se na entrada da casa. Notando a presença do segundo policial, o borracheiro deu dois passos em direção a Marcos, como estivesse com a intenção de acertar um golpe de facão no policial. Mas logo o borracheiro parou. E dividindo seus olhar entre Marcos e Ivan, mais uma vez berrava e proferia palavrões aos policiais. Marcos, ao avistar o colega postado na porta lhe disse:
_ Se este desgraçado se mover, mete uma bala nele!
As palavras de Marcos causaram estranheza em Ivan. O colega nunca conversava daquela forma. Ivan se preocupava com o que Marcos tinha visto no interior da casa. Sem palavras, apenas limitou-se a acenar positivamente com a cabeça para Marcos. Sacou de seu revólver e, apontando para baixo, fixou seus olhos no borracheiro. Marcos adentrou o banheiro. Seu coração pulsava incontinentemente, suas mãos trêmulas denunciavam uma preocupação extrema com o que poderia encontrar entre aqueles mantos tingidos de sangue. Deu dois passos e lentamente agachou-se, olhava aquela peça de tecido, tingida por uma cor rubra. Com sua mão direita, desenrolou lentamente o manto, logo parte do pequeno corpinho da criança desnudou-se, deixando à mostra uma cena horrorosa de arranhões e hematomas. Marcos então, com a mão esquerda desenrolou a outra parte do manto e notou que todo o corpinho da criança encontrava-se ensanguentado. Uma fralda cobria sua cabeça. Marcos respirou fundo. Olhava aquele corpo pequenino, com pequenos cortes no peito e profundos arranhões na barriga. Um de seus pezinhos parecia estar fraturado, pois apresentava uma mancha roxa e um grande inchasso. Marcos respirou fundo e tomou coragem para retirar a fralda totalmente encharcada de sangue. Lentamente levantou a fralda. Retirou-a com todo cuidado. A cena impressionou o experiente policial. Logo as lágrimas começavam a brotar de seus olhos. Soluçava sobre aquela inocente criança e seu destino trágico. Seus olhos marejavam perante tamanha barbaridade. A pequenina cabeça daquela imagem infantil apresentava um profundo corte que vinha da testa e terminava entre o nariz e a boca. Um corte provocado por um golpe desferido por um facao. Apesar da flagelação que sofreu, a criança parecia ainda respirar. Tomado pela comoção daquela cena, Marcos levantou-se rapidamente. Suas mãos tremulas pousavam em sua nuca. Marcos olhava para os lados, perdido em breves pensamentos. Tentava entender o que levava um homem a cometer um crime tão monstruoso. Logo a imagem daquele infeliz borracheiro se materializou em sua mente. Seus medos foram se dissipando, uma sensação destrutiva invadiu seu coração. Sentia fluir em sua alma um ódio mortal pelo infeliz. Marcos dirigiu-se à sala, tomado pela ira e uma incessante vontade de fazer valer a justiça, ali mesmo, naquele local. Olhou para o borracheiro. Já não tinha pelo algoz qualquer tipo de prudencia. Seus olhos fitavam aquele homem. Mesmo alcoolizado, o infeliz parecia sentir a obscuridade daquele olhar, e deu um passo para trás, mas continuava a portar o facão.
_ Seu desgraçado! – disse Marcos ao borracheiro
Ivan, imóvel na entrada da porta, nunca tinha visto seu amigo com aquele semblante tão tenebroso. Via uma frieza incomum em seus olhos. Tentava imaginar o que Marcos encontrou no cômodo. Ivan notou o medo nos olhos do borracheiro. Pronto para agir, o policial permanecia imóvel dividindo sua atenção entre o infeliz embriagado e o colérico policial. Marcos deu um passo em direção ao borracheiro, que respondeu levantando o facão em sua direção. Sem demonstrar qualquer intimidação frente ao borracheiro Marcos deu outro passo e lhe disse:
_ Seu covarde! Vou lhe dar o que você merece!
E antes que terminasse a frase Marcos deu um salto em direção ao borracheiro. O estado de embriagues do infeliz não lhe propiciou um tempo de reação à investida do policial. Marcos desferiu um soco certeiro em seu rosto, que fez que o borracheiro caísse no sofá e largasse o facão. Sobre o borracheiro, Marcos apenas balbuciava palavras em meio à potentes golpes contra o homem. Ivan aproximou-se rapidamente de Marcos e pegou o facão lançando-o para longe de ambos. Tentava separar seu colega daquele borracheiro, ainda sem entender qual foi a visão que chocou tanto Marcos. Mesmo seu porte físico não se mostrava suficiente para segurar o amigo. O borracheiro, inerte sobre o sofá, nada fazia. Depois de alguns instantes, Ivan conseguiu dar uma chave de braço no pescoço do amigo e o retirou de cima do borracheiro. Ivan estava perplexo com a atitude de Marcos, que estava completamente fora de si, movido apena por um ódio assustador. Com o amigo dominado, Ivan se afastou alguns metros do borracheiro e conteve Marcos, no canto da sala, junto à porta de entrada da casa.
_ Irmão! Olha prá mim! Calma! – pedia desesperadamente a Marcos.
Marcos, gradativamente foi recobrando a razão. Suava frio, suas mãos estavam quentes e firmes devido ao seu estado colérico. Ivan segurava seu pescoço com força. Lentamente, Marcos recobrava a razão. Seu esforço para se desvencilhar do amigo foi diminuindo. Marcos olhava atentamente o borracheiro. Seu olhar de ódio foi dando lugar ao olhar sereno, que sempre marcou seu temperamento. Marcos deu dois toques no braço de Ivan, acenado que estava bem. Ivan se pôs entre seu amigo e o borracheiro e soltou vagarosamente seu braço do pescoço de Marcos. Sem dar um única palavra acenou para o amigo que respondeu também com um aceno de que estava bem. Marcos levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Ivan, imóvel na sala, permanecia atento aos movimentos do borracheiro que, inerte no sofá, olhava para o nada balbuciando palavras desconexas, impossíveis de se traduzir, sob o efeito do álcool.
Marcos, saiu do banheiro carregando em seu colo a criança. Os panos ensanguentados, eram o sinal para Ivan que a cena presenciada por seu colega era aterradora. Marcos procurou esconder o corpo e o rosto da criança, afim de não chamar a atenção das pessoas do lado de fora e provocar a ira deles, evitando um linchamento. Marcos entrou no minúsculo quarto daquela casa e retirou o lençol que cobria a cama. Utilizando de todo cuidado, envolveu o corpo da criança no lençol. Abraçou cuidadosamente aquela pequenina vida em seu peito. Sentia o calor daquela criança e seus traços de respiração. Aquele bebê resistira à sua flagelação, mas agonizava à espera de socorro. Logo o lençol branco começava a ser tingido pelo sangue da criança. Era o sinal que Marcos tinha que ser rápido no resgate. Saiu do banheiro com a criança em seu colo, olhou para Ivan e disse:
_Algeme este infeliz! Vamos levá-lo também ao hospital e depois para a Delegacia!
_ Certo! – respondeu Ivan
Enquanto Marcos segurava com cuidado a criança, ele observava a atuação rápida de Ivan, que energicamente levantou o borracheiro e o algemou. O bêbado mal conseguia parar em pé. Suas pernas não se firmavam no chão, o que irritou Ivan, que segurou firmemente em seu braço e o arrastou para a viatura. Na entrada da borracharia, as pessoas tentavam visualizar a criança nos braços de Marcos. O policial, temendo um linchamento, agiu rapidamente, não permitindo que qualquer pessoa aproximasse dele. Ivan, logo atrás, rapidamente colocou o borracheiro no interior da viatura.
_ Rápido! Ela está muito machucada! – pediu Marcos ao amigo.
Ivan, ainda sem entender qual foi a visão tão grotesca que seu amigo presenciou, obedeceu prontamente à solicitação de Marcos. Rapidamente, ambos policiais estavam embarcados na viatura. Ivan empreendeu marcha, cantando pneu da viatura, em direção à Santa Casa de Jaguariúna. A viatura adentrou rapidamente a rodovia. Ivan acionou o sistema luminoso de emergência e a sirene, alertando os demais veículos que transitavam à frente, da brevidade na passagem da viatura. Em alguns instantes observava Marcos em total silêncio, abraçado firmemente àquela pequena vida. Marcos parecia atônito, com pensamentos longe da realidade naquele instante. Ivan não se atrevia a perguntar o ocorrido. Limitava-se apenas a abreviar a chegada ao hospital. Mostrando toda sua perícia na direção, Ivan rapidamente adentrou a cidade de Jaguariúna, e em meio à ultrapassagens, rompia passagem entre os veículos. A sirene da viatura avisava os demais motoristas da emergência que, instintivamente, davam passagem derivando os veículos para as laterais das ruas, afim de facilitar a passagem dos policiais.
Em poucos minutos a viatura já adentrava a entrada principal da Santa Casa de Jaguariúna. Ivan parou a viatura defronte à entrada do saguão principal e, antes que desligasse o motor, viu Marcos saltando rapidamente da viatura, levando em seu colo a criança. Ivan desembarcou da viatura e dirigindo-se ao borracheiro, notou que o mesmo encontrava-se dormindo, com o rosto repleto de hematomas, fruto dos golpes alucinados de Marcos. Sem demonstrar muito zelo por aquele homem, Ivan o puxou pelos braços e o levou, algemado, ao interior do hospital, afim de ser devidamente medicado. Ao chegar a saguão, Ivan foi abordado por uma enfermeira, que trazia consigo uma cadeira de rodas.
_ Este homem está completamente embriagado! – disse à enfermeira – Cuidado com ele! Se mostrou violento!
Mediante à afirmação de Ivan, a enfermeira apenas acenou positivamente com a cabeça e, levou o borracheiro ao interior do hospital. Logo a enfermeira entrou por uma enorme porta de vidro fosco, sumindo dos olhos do policial. Ivan decidiu por esperar o retorno de Marcos, que também havia adentrado por aquela porta. Dirigiu-se então à viatura afim de estacionar o veículo no pátio do hospital. Pegou sua prancheta e separou os impressos para a elaboração do Boletim de Ocorrência. Trancou a viatura e dirigiu-se novamente ao saguão principal da Santa Casa. Aparentando mais calma, Ivan pôde avistar uma numerosa quantidade de pessoas que esperavam para serem atendidas. Todas olhavam perplexas seus movimentos. O policial via no semblante daquelas pessoas um olhar curioso devido à sua sua presença. Notava que as pessoas cochichavam entre si, tentando descobrir o motivo daquela entrada rápida. Eram homens e mulheres com suas crianças, à espera do auxílio medico. Sabiam que o atendimento seria adiado devido à emergência daquela ocorrência.
Enquanto Ivan estava temporariamente perdido em vagos pensamentos, à espera de seu colega, uma mulher aproximou-e dele e tocando em seu braço lhe perguntou:
_ Com licença, seu guarda! Aquele homem que o senhor trouxe não é do posto de gasolina na estrada?
Ivan dirigiu seu olhar àquela mulher. Observava seus traços simples e sua roupa singela. Uma mulher de cor morena, magra e estatura baixa. Segurava em sua mão esquerda uma menina com pouco mais de sete anos. A criança estava pálida, não só devido à sua doença, mas principalmente temendo que a pessoa com qual Ivan trouxe algemado tratar-se de seu pai. Logo Ivan notou que aquela mulher simples era a esposa do borracheiro. Demonstrando cuidado com suas palavras, e fitando os olhos daquela mulher, ele respondeu:
_ A senhora mora na borracharia do posto?.
_ O borracheiro é seu marido?
A mulher apenas acenou de forma positiva com a cabeça. Fitava os olhos de Ivan, como se esperando por uma notícia ruim. Ela lentamente pousava sua mão direita no braço de Ivan. Seus olhos começaram a brilhar com as primeiras lágrimas que brotavam. A mulher parecia adivinhar o que seu marido fez. Voltou a perguntar à Ivan, já balbuciando as palavras;
_ E minha filha? O que houve com ela?
Ivan, tomado por compaixão pela mulher, e medindo suas palavras afim de não melindrar aquela triste pessoa, limitou-se responder:
_ Sua filha foi socorrida! Houve um problema na borracharia!
Logo as lágrimas brotaram dos olhos daquela mulher. Sua voz embargada evidenciava a dor que rompia de seu coração. Ivan sentia sua mãos trêmulas. A mulher lentamente baixou sua cabeça. Não conseguia mais proferir qualquer palavra. Parecia sentir que algo estava errado. Sua lágrimas escorriam em seu rosto sofrido pela insólita vida que vivia. Ela lentamente agachou-se e apoiando-se em seus joelhos chorava silenciosamente. Cruzou os braços sobre o joelhos e baixou a cabeça. Sua filha, abraçou-a carinhosamente. Ivan não conseguiu conter sua emoção frente àquela imagem de mãe e filha abraçadas junto ao piso do hospital. Sentiu seus olhos marejarem. Lentamente, Ivan afastou-se delas, colocando-se do lado de fora do hospital. Seu peito parecia lhe apertar o coração. Ivan tentava conter as primeiras lágrimas, mas não escondia sua compaixão pela dor da mãe e da filha. Ouvia aquele choro silencioso e sentia lhe penetrar a alma a dor daquela mãe. Ivan baixou sua cabeça e chorou.
Após alguns minutos de cabeça baixa, Ivan sentiu um toque em seu ombro. Era Marcos que retornava do interior do Pronto Socorro. O olhar vago de Marcos evidenciava que algo pior ocorreu. Também apresentava os olhos vermelhos da emoção daqueles momentos. Ele pegou no braço de Ivan e o levou para o pátio do hospital. Seu semblante de extrema tristeza era marcante. Olhando para Ivan, lhe disse:
_ A criança faleceu!
Ivan mais uma vez baixou a cabeça. Não conseguia formular qualquer palavra para o amigo. Um breve silêncio tomou conta de ambos policiais, atônitos frente à sua impotência em salvar aquela pequenina vida. Ivan tomou coragem e reuniu forças para avisar o amigo sobre a mãe no saguão do hospital. Marcos apenas deu um sinal de positivo com sua mão. E nada mais falou. Ambos policiais sentiram a cruel realidade que a vida impõe em certos momentos, evidenciando a total incapacidade humana frente à violência imposta por alguns homens desalmados. O desfecho desta triste história foi consumado com a prisão em flagrante do borracheiro. O motivo de um ato cruel se mostrou ainda mais torpe quando os policias descobriram que o borracheiro, cegado pelo ciúmes, acreditava que sua mulher tivesse um amante. Ignorou completamente o zelo maternal em socorrer sua filha adoecida ao hospital, crendo que ela apenas encontrava motivos para ver um outro homem. Seu ódio se refletiu em uma forma da vingança inescrupulosa sobre uma indefesa criança. Acreditava que agredindo aquela recém-nascida estaria despejando seu ódio em sua mulher. Aquela mulher, sofrida pela imposição da vida, que mostrava sua temperança dividindo seu tempo entre o trabalho e suas filhas e, ainda encontrava amor e compreensão para estar ao lado do marido, não tinha olhos para outro homem. Não vivia para si, mas apenas para sua família.
Ivan e Marcos foram testemunhas da covardia sem limites que o homem pode cometer. Sentiram toda a intensidade daquele drama familiar traduzido na violência de um homem cegado por seus ciúmes, de uma criança incapaz de se defender e de uma mulher simples e corajosa. Marcos, em especial, sentiu a sensação de ódio e busca da justiça a qualquer custo. Aquele policial, costumeiramente contido em palavras e ações, que se destacava pela frieza e sistemática em suas atitudes, se viu envolvido pela emoção do momento e sentiu em si a dor daquela criança. Marcos sentiu florescer em seu coração, os sentimentos mais inatos da natureza humana. Sentiu a compaixão, o amor e o ódio. Mais que um policial, Marcos era um ser humano.
Dentro deste contexto, que envolve segurança e apoio humano, Marcos e Ivan, patrulham a rodovia, a bordo de um Chevrolet Corsa, uma viatura semi-nova. O fato destes policiais utilizarem um veículo em ótimas condições se deve à parceria entre a Polícia Rodoviária e a concessionária responsável pela rodovia. Parceria esta, já prevista no contrato de concessão. Um ponto positivo para os patrulheiros, no auxílio aos condutores e no combate ao crime na rodovia.
Marcos e Ivan iniciam seu turno de trabalho em um ambiente de aparente tranquilidade. O fim da tarde de sábado é marcado por poucos veículos transitando pelas rodovias da região, fato que leva a poucas chances de ocorrer um acidente. Marcos é o motorista da viatura, enquanto Ivan pode ser considerado o encarregado desta dupla já acostumada à inúmeras ocorrências, sejam em acidentes, sejam policiais. E Marcos observa o movimento, dirigindo em uma baixa velocidade, o que propicia um melhor acompanhamento do tráfego e identificação de possíveis irregularidades ao longo da via. Com seus quase 16 anos de profissão, Marcos, é um policial experiente, de aspecto franzino, baixo e dono de uma enorme tranquilidade. Seu equilíbrio se traduz na grande perspicácia e extrema atenção nas ocorrências em que já se envolveu. Sua atuação efetiva, principalmente no combate ao crime, é motivo de respeito e admiração pelos seus colegas. Ivan pode ser considerado o contrário de seu companheiro, mas não menos respeitado e admirado pelos colegas. Com mais de vinte anos de profissão, Ivan sempre foi marcado pelo pragmatismo, energia e, podemos dizer também, sua intempestividade. Seu porte atlético, estatura alta e uma voz grave denotam uma imagem de intimidação aos que o vêem pela primeira vez. Mas apesar desta aparência intimidadora, Ivan é considerado uma pessoa amável e extremamente afeiçoada aos amigos.
A grande diferença entre ambos está no comportamento, enquanto Marcos é equilibrado e metódico em sua atuação, Ivan é explosivo e prático. Ivan é do tipo que não gosta de levar desaforo para casa. Marcos é sereno. Esta diferença tão gritante em temperamentos foi determinante na decisão do comandante em juntá-los em uma única equipe. Preocupado com a explosão e irreverencia de Ivan, resolveu colocá-lo com Marcos, dando o toque de sutileza na execução das tarefas. O objetivo é tornar a dupla mais equilibrada, sem perder a energia e determinação no cumprimento do dever. Uma mistura que na teoria, teria tudo para dar certo.
_ Está muito tranquilo! – disse Ivan, aparentando um certo tédio.
_ Que continue assim! – respondeu Marcos.
_ Vamos parar logo e realizar uma fiscalização. – disse Ivan
_ Calma, irmão!Primeiro vamos terminar o patrulhamento, depois vamos ter tempo para isso – respondeu novamente Marcos.
O objetivo principal de ambos policiais é propiciar a sensação de segurança aos condutores que trafegam pela rodovia. Além do patrulhamento, a dupla também adentra os postos e restaurantes ao longo da via, afim de inibir possíveis práticas delituosas. A dupla já adentrava no pátio do terceiro posto visitado, quando foi surpreendido por uma aglomeração de pessoas, junto à borracharia, localizada em um dos extremos do posto, distante da bomba e do restaurante. As pessoas, funcionários do posto e do restaurante, apinhavam-se junto à entrada da borracharia, em uma porta de acesso à uma pequenina casa, localizada nos fundos. Esta aglomeração atraiu a dupla de policiais, que atentos, rumaram em direção à borracharia.
_ Que será que está havendo lá? – perguntou Marcos.
_ Não sei! Mas vamos com cuidado! Pode ser uma tentativa de roubo – respondeu Ivan.
A aproximação da viatura da policia rodoviária chamou a atenção das pessoas, que ao avistarem os policiais, começaram a gesticular intensamente pedindo mais rapidez na chegada da polícia. Marcos e Ivan encostaram a viatura a poucos metros da entrada, desembarcaram e iniciaram sua caminhada em direção à borracharia. Logo várias pessoas cercaram os policiais. Eram homens e mulheres que aparentavam bastante agitação. Viam nos policiais a solução daquela situação.
_ Seu guarda! Ainda bem que chegou – disse uma pessoa para Marcos.
_ Graças a Deus! – exclamou outra.
_ Ele está louco! – disse uma terceira pessoa.
_ Mas quem está louco? – perguntou Ivan.
_ O borracheiro – respondeu.
Os olhares das pessoas que rodeavam a dupla estavam transtornados. Algumas mulheres tremiam. Os homens suavam frio mostrando que a situação era mais delicada que parecia. Marcos e Ivan continuavam sem saber o que estava ocorrendo. Ao aproximarem-se da entrada da borracharia, próximos à entrada da casa, outra pessoa alertou a dupla dizendo que havia um homem armado com um facão, no interior da borracharia. A dupla entreolhou-se e, como em uma transmissão de pensamentos, se posicionaram de forma defensiva sobre uma possível agressão do citado homem. Marcos virou-se para as pessoas e perguntou:
_ Afinal! O que está havendo aqui?
_ O borracheiro bebeu todas e está fora de si – disse um jovem, que pelos seus trajes, denunciava tratar-se de um frentista. – sua mulher foi até o Pronto Socorro levar a filha e deixou ele cuidando da outra filha, uma criança de colo. Mas o cara começou a beber e empunhar um facão dizendo que vai matar o primeiro que aparecer.
_ Seu guarda! Ele está com a criança lá dentro! Faz alguma coisa! – disse uma mulher à Ivan.
_ Nós vamos fazer! Tenha calma! – respondeu.
Um homem aproximou-se de Marcos e disse;
_ Seu guarda! Sou o proprietário do posto e desta borracharia! Quando me telefonaram dizendo sobre o ocorrido, corri para cá! Admiti este homem há uns quatro meses, sabia que ele era alcoólatra, mas ele veio me pedir emprego dizendo que estava recomeçando sua vida!
As palavras daquele senhor foram interrompidas por gritos agudos vindos do interior da casa. As palavras ganhavam uma entonação empastada, denunciando o estado de embriagues de quem proferiu. Gritos e palavrões do embriagado eram proferidos à cada momento que alguém apontasse a cabeça na porta da casa. A pessoas, do lado de fora, temiam entrar na casa e serem atingidas pelo facão daquele homem embriagado. Pediam insistentemente ao borracheiro que parasse com aquela cena agressiva. Queriam retirar a criança daquela casa. Mas não sabiam se a criança fora molestada pelo pai. O homem, novamente fitou os olhos de Marcos e continuou a conversa:
_ Eles passavam fome! O borracheiro e sua mulher imploraram serviço. Não tive como negar, pois precisava de um borracheiro que morasse aqui no posto. A esposa deste infeliz é uma mulher trabalhadora e corajosa. Ela ajuda o marido trabalhando como doméstica na cidade. E ela ainda sofria quando o marido se embriagava. Era agredida.
_ Mas ela nunca denunciou o marido? – perguntou Marcos.
_ Pelo que sei, ele chegou a se internar em uma clínica. Aqui no posto até que ele chegava a beber. Mas ficava na sua e nunca tinha mostrado esta agressividade! – respondeu.
Mais uma vez as palavras do proprietário foram cessadas com os berros do borracheiro, que mal conseguia formular uma frase exata. Pelos berros e palavrões, ele queria que todos se distanciassem. Mas a cada urro, mais pessoas aproximavam-se da borracharia, o que causou ainda mais a ira do borracheiro. Ivan, próximo a parede, temia que sua presença pudesse ainda tornar ainda mais agressivo o comportamento do borracheiro. Aguardava Marcos terminar a conversas com o proprietário afim de agir. A vontade de Ivan era entrar logo naquela casa, tomar no braço o facão do borracheiro e resgatar a criança. Mas o policial contera seus atos, à espera do amigo. Marcos ouvia atentamente o proprietário com o intuito de obter mais informações sobre o passado daquele bêbado.
_ Mas o quê o fez ficar neste estado? – perguntou ao proprietário.
_ Não sei! Só sei que ele cuidava da filha, uma criança recém-nascida. Segundo os frentistas, ele estava embriagado na porta da borracharia e proferia palavras de baixo calão em direção aos frentistas e aos clientes do posto. Já portava o facão. Quando meus funcionários se aproximaram dele, o infeliz correu para a casa e disse que quem entrasse morreria. – respondeu o homem.
Marcos pediu calma ao dono da borracharia. Lhe disse que o que pudesse fazer para resolver logo aquela triste situação, ele faria. Então aproximou-se de Ivan e disse:
_ Não ouço a criança! Vamos ter que agir!
_ Deixa que eu vou! Rapidinho eu resolvo! – respondeu Ivan.
_ Vamos devagar! Primeiro eu vou até a porta me identificar ao borracheiro e iniciar um contato – disse Marcos
Aproximando-se da porta, Marcos colocou-se na entrada da casa, procurando aparentar calma e serenidade. Localizou visualmente o borracheiro. O pobre homem encontrava-se sentado no pequeno sofá velho de sua sala. Portava em sua mão direita um facão utilizado para poda de árvores. Trajava um macacão sujo de poeira e graxa. Havia uma garrafa de aguardente, daqueles artesanais e sem rótulo, já vazia, derrubada no sofá. O borracheiro, um homem de meia idade, cor morena, baixo e franzino, exibia um ralo bigode que contrastava com seu rosto fino. Ao avistar o policial na entrada da casa, deu um salto e colocando-se em pé, levantando o facão, exibia-se em posição de ataque à Marcos. Balbuciava palavras difíceis de serem compreendidas, tamanho seu estado de embriagues. Marcos, atento aos movimentos do borracheiro, lhe disse:
_ Calma, amigo! Não vou lhe fazer mal! Abaixa este facão e deixa que eu veja seu filho!
Quando o policial se referiu a criança, o borracheiro ficou ainda mais inquieto. Começou a berrar para Marcos mandando que se afastasse. Sua palavras eram proferidas com certo esforço, e saíam empastadas. O borracheiro, então começava a berrar para que Marcos se afastasse. Marcos deu um passo para trás e disse:
_ Calma! Mas o que houve?
O borracheiro nada respondia, e apenas berrava para que Marcos saísse da casa. Varrendo visualmente aquele minúsculo cômodo, o policial avistou um carrinho de criança, no canto da sala, próximo ao corredor de acesso aos demais cômodos da casa. seu estado de conservação era sofrível, parecia ser encontrado em algum lixão da cidade. Os panos que compunham o berço do carrinho estavam desgastados e manchados, devido aos efeitos do tempo. Mas apesar da conservação, o carrinho estava limpo, denunciando o cuidado da mãe para com sua criança. Marcos não avistava a criança no berço do carrinho. Notou que atrás do carrinho, haviam algumas mantas esparramadas pelo chão. Uma pequena mancha no piso vermelho da casa, lhe parecia u’a mancha de sangue. Aquele cenário denunciava que algo de ruim poderia ter ocorrido com a criança. Marcos mal prestava atenção nas palavras inteligíveis daquele homem. Sua atenção estava voltada para um pequeno cômodo, o que lhe parecia ser o banheiro da casa, onde a mancha adentrava. Marcos deu dois passos para trás e, junto a Ivan, que se colocava entre a porta e a casa, disse:
_ Não vejo a criança! Mas parece que tem sangue no chão!
_ Irmão! Vou entrar lá e cobrir de pancada este safado! – respondeu Ivan.
Marcos virou-se para Ivan e tocando com a mãos os ombros de Ivan, lhe disse:
_ Calma! Eu vou entrar e pedir para ver a criança! Vai por trás e vê se dá para entrar!
Ivan apenas concordou com seu amigo através de um gesto positivo com a cabeça. Marcos voltou para a entrada da casa e, com as mãos levantadas, olhando fixamente no borracheiro, lhe disse:
_ Presta atenção! Vou entrar!
Marcos lentamente, passo sobre passo, adentrou a casa. Seus movimentos eram acompanhados atentamente pelo borracheiro, que permanecia imóvel, se apoiando à cabeceira do sofá, portando o facão com as duas mãos, pronto para atacar o policial. Ao se aproximar do cômodo onde os vestígios poderiam levar à criança, Marcos foi surpreendido pelo borracheiro que aos berros, e empunhando agressivamente o facão, berrava para que ele se afastasse daquele local. Marcos parou um instante, com as mãos levantadas, e olhando fixamente nos olhos vermelhos do borracheiro, acenou com a cabeça em sinal de positivo, tentando passar uma aparência amigável ao borracheiro. Junto à entrada do cômodo, Marcos viu tratar-se realmente de um pequeno banheiro. O Cômodo tinha pouca iluminação e uma pequena janela, situada sob os galhos de uma árvore frondosa, nos fundos da casa. Estes galhos faziam sombras sobre a janela, escurecendo o ambiente, o que dificultava a visualização de seu interior.
Marcos tinha sua atenção dividida entre o borracheiro e o banheiro. Esperava contar com o auxílio de seu colega. Ivan, nos fundos da casa, notou que as janelas encontravam-se trancadas, bem como a porta da cozinha, o único acesso entre os fundos e a casa. Na posição em que estava, Ivan só poderia auxiliar se arrombasse a porta, mas o barulho que provocaria e sem saber da posição da criança, o fez abortar esta possibilidade, com temor que algo pudesse ocorrer no interior da casa. Ivan dirigiu-se à frente da casa, aguardando qualquer pedido de auxilio do amigo para que pudesse entrar. Confiava na experiencia do colega para resolver o problema. E se curvando frente à porta avisou o colega da impossibilidade de auxílio.
No interior da casa, Marcos deu mais um passo em direção ao banheiro. Vendo que o borracheiro não esboçava qualquer reação, procurou varrer com os olhos o interior do banheiro, afim de localizar a criança. Logo sua atenção foi voltada ao rodapé da parede, junto à privada, onde um amontoado de mantas e fraldas encontravam-se enrolados de forma que parecia, aos olhos de Marcos, com um pequeno corpo entre estes trajes. A cena que Marcos podia visualizar lhe causou um frio em sua barriga. As fraudas e mantas encontravam-se totalmente ensanguentadas. A mancha, que Marcos inicialmente não tinha certeza tratar-se de sangue, devido ao piso vermelho da sala, demonstrava ser mesmo uma trilha de sangue. Quando atingiu o piso claro do pequeno banheiro, estas manchas se tornaram evidentes. Logo, Marcos visualizou parte do bracinho da criança de fora da manta, denunciando que ela poderia estar enrolada naquele manto. O policial ficou alguns instantes imóvel, petrificado frente à uma cena monstruosa. Sua vontade era de saltar naquela pequena vida afim de lhe oferecer o resgate. Seu coração parecia querer sair em sua boca. Marcos então voltou seu olhar ao borracheiro. Seus olhos, que antes aparentavam incerteza e prudência, agora traduziam uma raiva contida prestes a aflorar. Marcos, então olhando para a porta da casa, disse:
_ Ivan! Fique na porta!
Ivan prontamente postou-se na entrada da casa. Notando a presença do segundo policial, o borracheiro deu dois passos em direção a Marcos, como estivesse com a intenção de acertar um golpe de facão no policial. Mas logo o borracheiro parou. E dividindo seus olhar entre Marcos e Ivan, mais uma vez berrava e proferia palavrões aos policiais. Marcos, ao avistar o colega postado na porta lhe disse:
_ Se este desgraçado se mover, mete uma bala nele!
As palavras de Marcos causaram estranheza em Ivan. O colega nunca conversava daquela forma. Ivan se preocupava com o que Marcos tinha visto no interior da casa. Sem palavras, apenas limitou-se a acenar positivamente com a cabeça para Marcos. Sacou de seu revólver e, apontando para baixo, fixou seus olhos no borracheiro. Marcos adentrou o banheiro. Seu coração pulsava incontinentemente, suas mãos trêmulas denunciavam uma preocupação extrema com o que poderia encontrar entre aqueles mantos tingidos de sangue. Deu dois passos e lentamente agachou-se, olhava aquela peça de tecido, tingida por uma cor rubra. Com sua mão direita, desenrolou lentamente o manto, logo parte do pequeno corpinho da criança desnudou-se, deixando à mostra uma cena horrorosa de arranhões e hematomas. Marcos então, com a mão esquerda desenrolou a outra parte do manto e notou que todo o corpinho da criança encontrava-se ensanguentado. Uma fralda cobria sua cabeça. Marcos respirou fundo. Olhava aquele corpo pequenino, com pequenos cortes no peito e profundos arranhões na barriga. Um de seus pezinhos parecia estar fraturado, pois apresentava uma mancha roxa e um grande inchasso. Marcos respirou fundo e tomou coragem para retirar a fralda totalmente encharcada de sangue. Lentamente levantou a fralda. Retirou-a com todo cuidado. A cena impressionou o experiente policial. Logo as lágrimas começavam a brotar de seus olhos. Soluçava sobre aquela inocente criança e seu destino trágico. Seus olhos marejavam perante tamanha barbaridade. A pequenina cabeça daquela imagem infantil apresentava um profundo corte que vinha da testa e terminava entre o nariz e a boca. Um corte provocado por um golpe desferido por um facao. Apesar da flagelação que sofreu, a criança parecia ainda respirar. Tomado pela comoção daquela cena, Marcos levantou-se rapidamente. Suas mãos tremulas pousavam em sua nuca. Marcos olhava para os lados, perdido em breves pensamentos. Tentava entender o que levava um homem a cometer um crime tão monstruoso. Logo a imagem daquele infeliz borracheiro se materializou em sua mente. Seus medos foram se dissipando, uma sensação destrutiva invadiu seu coração. Sentia fluir em sua alma um ódio mortal pelo infeliz. Marcos dirigiu-se à sala, tomado pela ira e uma incessante vontade de fazer valer a justiça, ali mesmo, naquele local. Olhou para o borracheiro. Já não tinha pelo algoz qualquer tipo de prudencia. Seus olhos fitavam aquele homem. Mesmo alcoolizado, o infeliz parecia sentir a obscuridade daquele olhar, e deu um passo para trás, mas continuava a portar o facão.
_ Seu desgraçado! – disse Marcos ao borracheiro
Ivan, imóvel na entrada da porta, nunca tinha visto seu amigo com aquele semblante tão tenebroso. Via uma frieza incomum em seus olhos. Tentava imaginar o que Marcos encontrou no cômodo. Ivan notou o medo nos olhos do borracheiro. Pronto para agir, o policial permanecia imóvel dividindo sua atenção entre o infeliz embriagado e o colérico policial. Marcos deu um passo em direção ao borracheiro, que respondeu levantando o facão em sua direção. Sem demonstrar qualquer intimidação frente ao borracheiro Marcos deu outro passo e lhe disse:
_ Seu covarde! Vou lhe dar o que você merece!
E antes que terminasse a frase Marcos deu um salto em direção ao borracheiro. O estado de embriagues do infeliz não lhe propiciou um tempo de reação à investida do policial. Marcos desferiu um soco certeiro em seu rosto, que fez que o borracheiro caísse no sofá e largasse o facão. Sobre o borracheiro, Marcos apenas balbuciava palavras em meio à potentes golpes contra o homem. Ivan aproximou-se rapidamente de Marcos e pegou o facão lançando-o para longe de ambos. Tentava separar seu colega daquele borracheiro, ainda sem entender qual foi a visão que chocou tanto Marcos. Mesmo seu porte físico não se mostrava suficiente para segurar o amigo. O borracheiro, inerte sobre o sofá, nada fazia. Depois de alguns instantes, Ivan conseguiu dar uma chave de braço no pescoço do amigo e o retirou de cima do borracheiro. Ivan estava perplexo com a atitude de Marcos, que estava completamente fora de si, movido apena por um ódio assustador. Com o amigo dominado, Ivan se afastou alguns metros do borracheiro e conteve Marcos, no canto da sala, junto à porta de entrada da casa.
_ Irmão! Olha prá mim! Calma! – pedia desesperadamente a Marcos.
Marcos, gradativamente foi recobrando a razão. Suava frio, suas mãos estavam quentes e firmes devido ao seu estado colérico. Ivan segurava seu pescoço com força. Lentamente, Marcos recobrava a razão. Seu esforço para se desvencilhar do amigo foi diminuindo. Marcos olhava atentamente o borracheiro. Seu olhar de ódio foi dando lugar ao olhar sereno, que sempre marcou seu temperamento. Marcos deu dois toques no braço de Ivan, acenado que estava bem. Ivan se pôs entre seu amigo e o borracheiro e soltou vagarosamente seu braço do pescoço de Marcos. Sem dar um única palavra acenou para o amigo que respondeu também com um aceno de que estava bem. Marcos levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Ivan, imóvel na sala, permanecia atento aos movimentos do borracheiro que, inerte no sofá, olhava para o nada balbuciando palavras desconexas, impossíveis de se traduzir, sob o efeito do álcool.
Marcos, saiu do banheiro carregando em seu colo a criança. Os panos ensanguentados, eram o sinal para Ivan que a cena presenciada por seu colega era aterradora. Marcos procurou esconder o corpo e o rosto da criança, afim de não chamar a atenção das pessoas do lado de fora e provocar a ira deles, evitando um linchamento. Marcos entrou no minúsculo quarto daquela casa e retirou o lençol que cobria a cama. Utilizando de todo cuidado, envolveu o corpo da criança no lençol. Abraçou cuidadosamente aquela pequenina vida em seu peito. Sentia o calor daquela criança e seus traços de respiração. Aquele bebê resistira à sua flagelação, mas agonizava à espera de socorro. Logo o lençol branco começava a ser tingido pelo sangue da criança. Era o sinal que Marcos tinha que ser rápido no resgate. Saiu do banheiro com a criança em seu colo, olhou para Ivan e disse:
_Algeme este infeliz! Vamos levá-lo também ao hospital e depois para a Delegacia!
_ Certo! – respondeu Ivan
Enquanto Marcos segurava com cuidado a criança, ele observava a atuação rápida de Ivan, que energicamente levantou o borracheiro e o algemou. O bêbado mal conseguia parar em pé. Suas pernas não se firmavam no chão, o que irritou Ivan, que segurou firmemente em seu braço e o arrastou para a viatura. Na entrada da borracharia, as pessoas tentavam visualizar a criança nos braços de Marcos. O policial, temendo um linchamento, agiu rapidamente, não permitindo que qualquer pessoa aproximasse dele. Ivan, logo atrás, rapidamente colocou o borracheiro no interior da viatura.
_ Rápido! Ela está muito machucada! – pediu Marcos ao amigo.
Ivan, ainda sem entender qual foi a visão tão grotesca que seu amigo presenciou, obedeceu prontamente à solicitação de Marcos. Rapidamente, ambos policiais estavam embarcados na viatura. Ivan empreendeu marcha, cantando pneu da viatura, em direção à Santa Casa de Jaguariúna. A viatura adentrou rapidamente a rodovia. Ivan acionou o sistema luminoso de emergência e a sirene, alertando os demais veículos que transitavam à frente, da brevidade na passagem da viatura. Em alguns instantes observava Marcos em total silêncio, abraçado firmemente àquela pequena vida. Marcos parecia atônito, com pensamentos longe da realidade naquele instante. Ivan não se atrevia a perguntar o ocorrido. Limitava-se apenas a abreviar a chegada ao hospital. Mostrando toda sua perícia na direção, Ivan rapidamente adentrou a cidade de Jaguariúna, e em meio à ultrapassagens, rompia passagem entre os veículos. A sirene da viatura avisava os demais motoristas da emergência que, instintivamente, davam passagem derivando os veículos para as laterais das ruas, afim de facilitar a passagem dos policiais.
Em poucos minutos a viatura já adentrava a entrada principal da Santa Casa de Jaguariúna. Ivan parou a viatura defronte à entrada do saguão principal e, antes que desligasse o motor, viu Marcos saltando rapidamente da viatura, levando em seu colo a criança. Ivan desembarcou da viatura e dirigindo-se ao borracheiro, notou que o mesmo encontrava-se dormindo, com o rosto repleto de hematomas, fruto dos golpes alucinados de Marcos. Sem demonstrar muito zelo por aquele homem, Ivan o puxou pelos braços e o levou, algemado, ao interior do hospital, afim de ser devidamente medicado. Ao chegar a saguão, Ivan foi abordado por uma enfermeira, que trazia consigo uma cadeira de rodas.
_ Este homem está completamente embriagado! – disse à enfermeira – Cuidado com ele! Se mostrou violento!
Mediante à afirmação de Ivan, a enfermeira apenas acenou positivamente com a cabeça e, levou o borracheiro ao interior do hospital. Logo a enfermeira entrou por uma enorme porta de vidro fosco, sumindo dos olhos do policial. Ivan decidiu por esperar o retorno de Marcos, que também havia adentrado por aquela porta. Dirigiu-se então à viatura afim de estacionar o veículo no pátio do hospital. Pegou sua prancheta e separou os impressos para a elaboração do Boletim de Ocorrência. Trancou a viatura e dirigiu-se novamente ao saguão principal da Santa Casa. Aparentando mais calma, Ivan pôde avistar uma numerosa quantidade de pessoas que esperavam para serem atendidas. Todas olhavam perplexas seus movimentos. O policial via no semblante daquelas pessoas um olhar curioso devido à sua sua presença. Notava que as pessoas cochichavam entre si, tentando descobrir o motivo daquela entrada rápida. Eram homens e mulheres com suas crianças, à espera do auxílio medico. Sabiam que o atendimento seria adiado devido à emergência daquela ocorrência.
Enquanto Ivan estava temporariamente perdido em vagos pensamentos, à espera de seu colega, uma mulher aproximou-e dele e tocando em seu braço lhe perguntou:
_ Com licença, seu guarda! Aquele homem que o senhor trouxe não é do posto de gasolina na estrada?
Ivan dirigiu seu olhar àquela mulher. Observava seus traços simples e sua roupa singela. Uma mulher de cor morena, magra e estatura baixa. Segurava em sua mão esquerda uma menina com pouco mais de sete anos. A criança estava pálida, não só devido à sua doença, mas principalmente temendo que a pessoa com qual Ivan trouxe algemado tratar-se de seu pai. Logo Ivan notou que aquela mulher simples era a esposa do borracheiro. Demonstrando cuidado com suas palavras, e fitando os olhos daquela mulher, ele respondeu:
_ A senhora mora na borracharia do posto?.
_ O borracheiro é seu marido?
A mulher apenas acenou de forma positiva com a cabeça. Fitava os olhos de Ivan, como se esperando por uma notícia ruim. Ela lentamente pousava sua mão direita no braço de Ivan. Seus olhos começaram a brilhar com as primeiras lágrimas que brotavam. A mulher parecia adivinhar o que seu marido fez. Voltou a perguntar à Ivan, já balbuciando as palavras;
_ E minha filha? O que houve com ela?
Ivan, tomado por compaixão pela mulher, e medindo suas palavras afim de não melindrar aquela triste pessoa, limitou-se responder:
_ Sua filha foi socorrida! Houve um problema na borracharia!
Logo as lágrimas brotaram dos olhos daquela mulher. Sua voz embargada evidenciava a dor que rompia de seu coração. Ivan sentia sua mãos trêmulas. A mulher lentamente baixou sua cabeça. Não conseguia mais proferir qualquer palavra. Parecia sentir que algo estava errado. Sua lágrimas escorriam em seu rosto sofrido pela insólita vida que vivia. Ela lentamente agachou-se e apoiando-se em seus joelhos chorava silenciosamente. Cruzou os braços sobre o joelhos e baixou a cabeça. Sua filha, abraçou-a carinhosamente. Ivan não conseguiu conter sua emoção frente àquela imagem de mãe e filha abraçadas junto ao piso do hospital. Sentiu seus olhos marejarem. Lentamente, Ivan afastou-se delas, colocando-se do lado de fora do hospital. Seu peito parecia lhe apertar o coração. Ivan tentava conter as primeiras lágrimas, mas não escondia sua compaixão pela dor da mãe e da filha. Ouvia aquele choro silencioso e sentia lhe penetrar a alma a dor daquela mãe. Ivan baixou sua cabeça e chorou.
Após alguns minutos de cabeça baixa, Ivan sentiu um toque em seu ombro. Era Marcos que retornava do interior do Pronto Socorro. O olhar vago de Marcos evidenciava que algo pior ocorreu. Também apresentava os olhos vermelhos da emoção daqueles momentos. Ele pegou no braço de Ivan e o levou para o pátio do hospital. Seu semblante de extrema tristeza era marcante. Olhando para Ivan, lhe disse:
_ A criança faleceu!
Ivan mais uma vez baixou a cabeça. Não conseguia formular qualquer palavra para o amigo. Um breve silêncio tomou conta de ambos policiais, atônitos frente à sua impotência em salvar aquela pequenina vida. Ivan tomou coragem e reuniu forças para avisar o amigo sobre a mãe no saguão do hospital. Marcos apenas deu um sinal de positivo com sua mão. E nada mais falou. Ambos policiais sentiram a cruel realidade que a vida impõe em certos momentos, evidenciando a total incapacidade humana frente à violência imposta por alguns homens desalmados. O desfecho desta triste história foi consumado com a prisão em flagrante do borracheiro. O motivo de um ato cruel se mostrou ainda mais torpe quando os policias descobriram que o borracheiro, cegado pelo ciúmes, acreditava que sua mulher tivesse um amante. Ignorou completamente o zelo maternal em socorrer sua filha adoecida ao hospital, crendo que ela apenas encontrava motivos para ver um outro homem. Seu ódio se refletiu em uma forma da vingança inescrupulosa sobre uma indefesa criança. Acreditava que agredindo aquela recém-nascida estaria despejando seu ódio em sua mulher. Aquela mulher, sofrida pela imposição da vida, que mostrava sua temperança dividindo seu tempo entre o trabalho e suas filhas e, ainda encontrava amor e compreensão para estar ao lado do marido, não tinha olhos para outro homem. Não vivia para si, mas apenas para sua família.
Ivan e Marcos foram testemunhas da covardia sem limites que o homem pode cometer. Sentiram toda a intensidade daquele drama familiar traduzido na violência de um homem cegado por seus ciúmes, de uma criança incapaz de se defender e de uma mulher simples e corajosa. Marcos, em especial, sentiu a sensação de ódio e busca da justiça a qualquer custo. Aquele policial, costumeiramente contido em palavras e ações, que se destacava pela frieza e sistemática em suas atitudes, se viu envolvido pela emoção do momento e sentiu em si a dor daquela criança. Marcos sentiu florescer em seu coração, os sentimentos mais inatos da natureza humana. Sentiu a compaixão, o amor e o ódio. Mais que um policial, Marcos era um ser humano.
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